a literatura como possibilidade dis(solução)

Cinema
A mediação de debates sobre obras do cinema e outras produções audiovisuais busca promover o cruzamento de saberes, com a intenção de refletir sobre as questões contemporâneas e humanizantes do longeviver que permeiam nossas existências. Afinal, todos envelhecemos.
Vamos pensar cinema e vida juntos?
Lámen Shop: da panela para a tela, da tela para o coração
por Maria Antonia Demasi
Lámen ou Ramen é o nome de um prato japonês popular e barato. A base é o macarrão que fica nadando em um caldo que mistura porco, carne, frango, algas e vegetais. Você pode estar torcendo o nariz para a descrição acima, mas, duvido que assim reagiria vendo por 1h30min as imagens delicadas e coloridas produzidas pelo diretor de LÁMEN SHOP, Eric Khoo: o filme é muito mais que uma viagem ao universo gastronômico oriental. Embalado pela trilha sonora sensível, somos todos levados pelos olhos e pelas emoções ao universo dos afetos familiares que tão bem conhecemos. Segredos, histórias mal contadas, relações difíceis, porém cheias de amor entre pais e filhos… Tudo na mesma grande panela de pressão dos laços familiares. Da vida em banho-maria que levava, Masato, um jovem chefe lámen, resolve sair. A morte do pai acaba por abreviar suas dúvidas em relação a procura de respostas para o passado de sua mãe já morta. O caminho é longo: China, Japão e Singapura territórios marcados por conflitos que deixaram marcas profundas na vida dos familiares de Masato (Takumi Saitoh) que acaba por encontrar, além de um Diário, escrito por sua mãe, recheado de segredos e receitas, a chance de refazer seus vínculos com seus antepassados. E aí parece morar o que comumente chamamos de “a magia do cinema”: nas sete salas onde aconteceram o CINE DEBATE ITAÚ VIVER MAIS em parceria com o Potal do Envelhecimento, as reações giraram basicamente em torno das emoções mobilizadas pelos personagens que, de uma maneira ou de outra, buscavam na estrutura familiar possível, um lugar de conforto. E olha só que interessante: confort food o nome “moderno” que damos hoje à boa e velha comida que nossas mães, avôs, tios e tias cozinharam para momentos de alegria, encontros memoráveis, reuniões familiares explosivas e todos afins que de alguma maneira, todos nós já experimentamos. Lámen Shop é, nesse sentido, um bom exemplar do que podemos chamar de um confort movie. A cada cena, uma mexida no tacho das lembranças da infância, das saudades de um tempo que já se foi, das inseguranças em relação ao que virá, mas sempre com a certeza de que não existe a receita perfeita: cada um de nós tem um tempo de cozimento da compaixão, um tempero para capacidade de amar, uma mistura possível entre o doce e o salgado da convivência familiar e, principalmente, o ponto exato para nos mantermos inteiros, potentes e prontos para degustar todos os sabores que a vida nos oferece. E, ao final, se parecer que deu tudo errado, relaxe: está para existir um cozinheiro que nunca tenha errado na mão!
Paterson, onde nada e tudo acontece
por Maria Antonia Demasi
Paterson é um jovem poeta que percebe o mundo a partir de um ponto de vista muito particular: o de motorista de ônibus numa pequena cidade americana que tem o mesmo nome que ele: Paterson. Tudo que vê e que ouve se torna matéria de poesia. A sala do Espaço Itaú de Cinema Frei Caneca em São Paulo estava quase lotada. Olhando da última fileira, a imagem era bacana: dezenas de cabeças grisalhas, brancas e carecas que se mexiam de lá pra cá numa conversa animada à espera do início da sessão. Paterson foi o filme do mês de abril do projeto Itaú Viver Mais. Além da entrada ser gratuita para quem tiver mais de 55 anos, acontece também logo após o término da exibição, um debate sobre o filme, sob a oordenação da equipe do Portal do Envelhecimento. Quem não gosta de comentar sobre o que viu, o que sentiu, o que gostou ou o que detestou, na saidinha do cinema? O filme acabou. Subiu o letreiro. Direção: Jim Jamursch Elenco: Adam Driver como Paterson e Golshiftheh Farahani, como Laura. O debate começou. Gostaram do filme? “Sim, mas é um filme diferente… Como diferente? Porque não acontece nada demais… nem de menos…é apenas uma semana normal na vida de uma pessoa um pouco diferente. Diferente? Sim, na vida de um motorista de ônibus que também é poeta!” Paterson é um jovem poeta que percebe o mundo a partir de um ponto de vista muito particular: o de motorista de ônibus numa pequena cidade americana que tem o mesmo nome que ele: Paterson. Tudo que vê e que ouve se torna matéria de poesia. Ele é calmo, silencioso, atento e gentil. E o que vocês acharam da relação dele com a jovem e linda mulher? “Ela também é diferente? Como diferente? Ela parece que vive em outro mundo. Fica em casa o dia todo pintando tudo com círculos e esferas em preto: das cortinas da sala, passando pelo sofá, portas, móveis… um mundo de bolinhas em preto e branco. Ela é uma artista! E os dois se combinam… Os dois. Foram eles que mobilizaram as reflexões daquela tarde e muitas emoções. Laura e Paterson são, à primeira vista, muito diferentes entre si. Laura extravasa todos seus sentimentos e desejos. Paterson acolhe o universo de Laura imerso num silêncio inundado de amor. Laura considera os poemas de Paterson muito bons e quer que ele tente publicá-los. Paterson apenas sorri. Laura e Paterson Laura e Paterson Laura e Paterson… O tempo escorria e todos os dias eles faziam tudo sempre igual. O que parece ter encantado a todos é a singeleza dessa relação. Quando tudo parecia que ia acabar numa grande confusão, em tremendo problema, o fim de um casamento… pronto! Nada acontecia, era vida que seguia dando conta do incontornável, do absurdo e do imprevisível. O filósofo alemão Nietzsche tem uma reflexão sobre a vida como obra de arte que se encaixa perfeitamente na problemática levantada pelo filme: o que devemos aprender com os artistas. – De que meios dispomos para tornar as coisas belas, atraentes, desejáveis para nós, quando elas não o são? – eu acho que em si elas nunca o são! E ninguém saiu do cinema achando que apesar de ambos estarem conectados com o que era emocionalmente essencial e viverem o amor traduzido em poesia e arte, tinham o que se pode chamar de “uma vida fácil”: tinham sim, a singularidade de cada um acolhida e transformada em potência de vida. Ao final do debate, quando todos já estavam prontos para enfrentar a luz forte do lado de fora da sala escura, um poema de Manoel de Barros, o poeta que enxergava em cada recanto de seu Mato Grosso, matéria boa pra fazer e viver poesia. Matéria de poesia /Manoel de Barros Todas as coisas cujos valores podem ser disputados no cuspe à distância servem para a poesia O homem que possui um pente e uma árvore serve para poesia Terreno de 10×20, sujo de mato – os que nele gorjeiam: detritos semoventes, latas servem para poesia Um chevrolé gosmento Coleção de besouros abstêmios O bule de Braque sem boca são bons para poesia As coisas que não levam a nada têm grande importância Cada coisa ordinária é um elemento de estima Cada coisa sem préstimo tem seu lugar na poesia ou na geral O que se encontra em ninho de joão-ferreira: caco de vidro, garampos, retratos de formatura, servem demais para poesia As coisas que não pretendem, como por exemplo: pedras que cheiram água, homens que atravessam períodos de árvore, se prestam para poesia Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma e que você não pode vender no mercado como, por exemplo, o coração verde dos pássaros, serve para poesia As coisas que os líquenes comem – sapatos, adjetivos – tem muita importância para os pulmões da poesia Tudo aquilo que a nossa civilização rejeita, pisa e mija em cima, serve para poesia Os loucos de água e estandarte servem demais O traste é ótimo O pobre-diabo é colosso Tudo que explique o alicate cremoso e o lodo das estrelas serve demais da conta Pessoas desimportantes dão para poesia qualquer pessoa ou escada Tudo que explique a lagartixa de esteira e a laminação de sabiás é muito importante para a poesia O que é bom para o lixo é bom para poesia Importante sobremaneira é a palavra repositório; a palavra repositório eu conheço bem: tem muitas repercussões como um algibe entupido de silêncio sabe a destroços As coisas jogadas fora têm grande importância – como um homem jogado fora Aliás, é também objeto de poesia saber qual o período médio que um homem jogado fora pode permanecer na Terra sem nascerem em sua boca as raízes da escória As coisa sem importância são bens de poesia pois é assim que um chevrolé gosmento chega ao poema e as andorinhas de junho Fragmento 1 do poema de abertura, Matéria de Poesia, 1974
A misteriosa fragilidade dos laçoshumanos, um amor líquido
por Maria Antonia Demasi
O filme “A Forma da Água”, para alguns um conto de fadas, é na realidade um retrato da misteriosa fragilidade dos laços humanos e dos amores líquidos. Quando depois da exibição de “A Forma da Água” as luzes da sala se acenderam, a expressão nos rostos das pessoas parecia confirmar o que um crítico de cinema havia afirmado sobre o filme: adultos também carecem de contos de fadas! O diretor Guillermo del Toro é especialista na arte de fazer um cinema calcado em mitos, lendas, folclores e histórias resgatadas da oralidade conseguindo assim ligar os acontecimentos contemporâneos aos arquétipos contidos nessas narrativas. Numa busca rápida na internet, a sinopse (também rápida) do filme. “Elisa é uma zeladora muda que trabalha em um laboratório onde um homem anfíbio está sendo mantido em cativeiro. Quando Elisa se apaixona com a criatura, ela elabora um plano para ajudá-lo a escapar com a ajuda de seu vizinho”. Sim, esse é um bom resumo dos 123 minutos que assistimos. Porém, o mais interessante é o que mobilizou cada um daqueles e daquelas que estavam no Espaço Itaú de Cinema. O casal assíduo dos debates, concordou que o filme escancarava o que, na opinião deles, o ser humano tem de pior, o desprezo pelo que é diferente. Para eles, o cenário da Guerra Fria (1962) vivido pelos americanos em nada mudou: continuamos insensíveis, mesquinhos e hipócritas. A senhora que sempre nos diz que adora nossas conversas pós filme, até concordou mas garantiu que o que vimos fora uma belíssima história de amor. E essa foi a deixa para outras mulheres dizerem do tipo de amor que perceberam estar em jogo nesse roteiro. O amor cansado da faxineira que sofria com um marido calado mas amava a cumplicidade da jovem amiga muda. O amor da jovem faxineira muda pelo vizinho gay, solitário como ela e ávido por encontrar eco para seu discurso de excluído do mercado de trabalho por ser velho, excluído do “mercado dos afetos” por ser homossexual, e também excluído de certos padrões de beleza por ser careca. E o maior e mais surpreendente amor: o dessa jovem faxineira muda e sonhadora pelo ser que veio das águas (aliás, de algum de nossos rios amazônicos). E esse amor não tinha forma: tinha mistério, surpresas, impossibilidades, medo e descobertas. Por ele Elisa se arriscou. Com ele construiu uma linguagem transbordante de afeto e cumplicidade. Com ele transou debaixo da água e encarou tudo que até então a oprimia: a hierarquia militarizada do laboratório, o preconceito em relação a sua mudez, as privações e um destino marcado pela diferença. A natureza instintiva de Elisa foi a força que forjou esse encontro. Elisa, deixou-se levar pela forma que saiu da água e juntos encontraram a liberdade que só o amor pode entregar. E nós que acabamos sendo um pouco críticos de cinema, acertamos: o filme levou 4 estatuetas no Oscar. Preparem-se! Toda última terça-feira de cada mês, 14 horas, tem filme para podermos refletir sobre a potência que cada fase da vida nos reserva. Quem tem 55+ a entrada é gratuita, com animados debates, nos espaços culturais de cinema Itaú em São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Curitiba, Brasília e Porto Alegre.
Foi um prazer conhecer o senhor ea senhora Adelman
por Maria Antonia Demasi
Monsieur & Madame Adelman, filme que foi debatido pelo Portal do Envelhecimento na última sessão de cinema do Itaú Viver Mais Cinema, representa a vida de um casal que esteve junto por 45 anos, contada pelo olhar da mulher que sempre acompanhou o marido, um renomado escritor. Todos os segredos e as intimidades da relação de um casal que envelheceu junto são revelados. “Em briga de marido e mulher, é melhor não meter a colher”. Esse ditado popular cabe perfeitamente para explicar como é difícil, mesmo se tratando de ficção, tentar entender a complexidade do universo de um casal. No filme, cujo título original em francês é “O pacto”, acompanhamos 45 anos da vida conjugal de Vitor e Sarah e de carona somos lembrados de como o mundo deu muitas voltas nesse período. Aliás foram tantas essas voltas, que a dupla, em muitos momentos, é afetada pelo humor dos tempos que se despediam da juventude paz e amor e abraçavam o neoliberalismo que invadia a Europa. Desses movimentos de transformação, ninguém saiu impune e a vida desse casal seguiu no andar dessa carruagem de mudanças que acabam, inevitavelmente, atingindo fortemente a relação. Até aqui, já seria um tema muito instigante olhar para as consequências desses percursos, mas ocorre que mal sabíamos nós, sentados nas poltronas do cinema, que o que nos era contado seria a moldura para um quadro muito mais perturbador. Vitor é um escritor que, depois de conhecer Sara e estabelecer com ela uma relação de total dependência em relação ao seu processo criativo, conhece a fama e o reconhecimento literário. Sara é a moça sabida de sorriso largo, de família judia que desde que olhou pela primeira vez para Vitor, decidiu que ele seria o homem de sua vida até que a morte os separasse. Paixão, farras, filhos que não foram exatamente o que imaginaram… afastamento, ciúmes, drogas, insegurança e pronto: o casamento de Monsieur e Madame Aldman ruiu. E aí acontece de um tudo: tentativas infrutíferas de reconciliação, frustrados “recomeços”, novos amores e a certeza de que a vida, separados, era pior do que juntos. Juntos e velhos. Assim estavam quando Vitor começou a apresentar os primeiros sintomas de uma demência que aparentemente poderíamos arriscar se tratar da Doença de Alzheimer. Sara, como tantas mulheres que encaram essa jornada dura, não desiste do marido. Mas sofre. O filme, acertadamente, mostra sutis e definitivos momentos em que a doença dilacera o casal. E eis que quando nós, os que já estávamos nos contorcendo nas cadeiras, pensamos que a vida desse casal seguiria nesse longo calvário, Sara resolve dar um final surpreendente para esse romance. Acendem-se as luzes, caras estupefatas e o começo de um murmurinho de onde podia-se ouvir: ”Nossa… ela não tinha o direito de matar o marido!” “Essa é na verdade uma história de amor verdadeiro…” “Mas porque raios ela escondeu a vida toda que era ela quem escrevia todos os livros de Vitor?” “Que direito ela tinha de decidir acabar com o sofrimento do marido?” E assim começou o debate. Aliás, a cada mês, mais e mais pessoas ficam após a sessão para falar, ouvir, trocar, descordar, descobrir, enfim exercer o direito básico assegurado pela Constituição: a livre expressão de ideias. E são muitas e diversas ideias sobre o que é um casamento, a fidelidade, o envelhecer, a morte, enfim, qual será o pacto possível para sermos felizes a dois? E para essa resposta, precisamos muito mais do que uma animada sessão de cinema.